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Pênalti! Pênalti? O sofrimento do ponto de vista de quem vai cobrar | Hilton Marques

Pênalti! Pênalti? O sofrimento do ponto de vista de quem vai cobrar


São Paulo – Se na música Divina Comédia Humana, Belchior – corintiano, mas não fanático por futebol, lembra o jornalista e biógrafo Jotabê Medeiros – contou estar “mais angustiado que um goleiro na hora do gol”, ainda falta a descrição de um jogador no instante que antecede a cobrança de um pênalti. Mesmo o cineasta alemão Wim Wenders dirigiu em 1972 um filme, diga-se assim, do ponto de vista do defensor: O Medo do Goleiro diante do Pênalti, inspirado em romance do escritor austríaco Peter Handke. 

“O pênalti pertence ao futebol, mas não é o futebol”, escreveu recentemente o cineasta Ugo Giorgetti, diretor do filme Boleiros, que está completando 20 anos, em sua coluna semanal no jornal O Estado de S. Paulo. “É outra coisa, é uma suspensão do jogo, um outro jogo, com outras regras e forma.” Ele mesmo, no filme citado, incluiu uma cena que se tornou famosa, de um árbitro que “inventa” um pênalti para beneficiar uma equipe ameaçada pelo rebaixamento. E manda repetir a cobrança duas vezes, até que o time consegue marcar e se safar.

O pênalti, ou a ansiedade que a chamada penalidade máxima provoca, foi tema de uma tese de doutorado aprovada em 2017 na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP). A redução do estado de ansiedade dos cobradores de pênalti no futebol é o nome da tese defendida pelo professor e psicólogo Daniel Donadio de Mello, que atende diversos atletas em consultório e observa que a ansiedade está sempre presente na vida dos jogadores.

Ninguém escapa

“O pênalti é uma situação bastante isolada, de grande responsabilidade do cobrador, em que muitos vezes vejo os atletas sofrerem e lutarem contra esta ansiedade”, diz Daniel, que pensou em um método combinando técnicas da psicologia, “alinhadas propositadamente” para ajudá-lo naquele momento crucial em que a bola está na marca, a 11 metros do gol.

Perder pênalti não é “privilégio” de perna de pau. Por melhor que seja, jogador algum está livre de errar. Atletas consagrados como Zico e Sócrates, por exemplo, perderam cobranças decisivas contra a França na Copa de 1986, o primeiro no tempo normal e depois na disputa por pênaltis. Os franceses se classificaram, mas o principal jogador do time, Platini, que havia marcado no jogo, perdeu sua cobrança.

A lista é longa. Maradona perdeu nas quartas de final de 1990, contra a antiga Iugoslávia, mas a Argentina se classificou. O italiano Roberto Baggio chutou para fora na decisão de Copa de 1994, garantindo o título para o Brasil. Foi a primeira decisão por pênaltis na história das Copas. A segunda, em 2006, envolveu novamente a Itália, que desta vez triunfou sobre a França.

Na Copa América de 2012, a seleção brasileira perdeu nada menos que quatro pênaltis e foi eliminada. A relação de penalidades perdidas inclui ainda celebridades como Messi, Beckham, Raí, Marcelinho Carioca, Edmundo, Pato – e até estrelas atuais, como Gabriel Jesus e Neymar. Causando frustração ou, muitas vezes, fúria do torcedor.

Daniel conta que os resultados de sua pesquisa foram animadores. “Mesmo em um período tão curto de treinamento já conseguimos observar mudanças significativas na ansiedade do cobrador”, conta. “Tive um feedback bem positivo dos atletas. Qualquer atleta que já tenha cobrado um pênalti sabe o quanto a ansiedade pode atrapalhar, então eles levaram o treinamento bastante a sério, fazendo todas as recomendações.”

Para o estudo – em que se aplica a técnica chamada biofeedback – antes de uma sequência de cobranças de pênalti, os atletas usavam jogos de computador especialmente adaptados, ligados a aparelhos que captavam sinais como respiração e batimento cardíacos. O objetivo era dar retorno aos jogadores na medida em que conseguissem reduzir a ansiedade. O jogo podia ficar mais fácil ou mais difícil, conforme a reação de cada um. Os testes foram feitos com 34 amadores, ainda jovens (15, 16 anos) mas o psicólogo e pesquisador acredita que as técnicas também podem e devem ser aplicadas em competições profissionais.

FIFAZico
Um dos maiores especialistas do Brasil, Zico marcou durante as cobranças após o empate com a França, em 1986. Mas perdeu no decorrer do jogo o gol que poderia ter evitado o empate

Pressão

“A pressão externa, seja ela do público composto pelos amigos e pais desses atletas, como a de um estádio lotado, pode causar uma ansiedade que muitas vezes interfere no resultado das cobranças”, afirma Daniel. O treinamento mental, de forma geral, deve sempre ser incorporado como parte do trabalho no dia a dia dos atletas, como parte básica da pirâmide de treinamentos composta por aspectos tático-técnicos, físicos e emocionais.”

Mas ele observa que reduzir a ansiedade não garante uma cobrança de pênalti mais eficiente. “Para obter o resultado esperado – o gol –, há muitas variáveis que influenciam”, diz Daniel. “A técnica do atleta, a estratégia da cobrança, horas de treino, estado físico, experiência, ansiedade, além de todas as qualidades do goleiro. Por isso mesmo que é importante que o atleta consiga estar no melhor fisicamente, taticamente, tecnicamente e emocionalmente neste momento, e o treino de redução de ansiedade melhora um desses aspectos, não deixando o estado emocional a sorte, destino, pressão externa ou humor momentâneo do atleta.”

Ao contrário do mito que se espalhou, até Pelé perdeu. Mais de um. Chutando para fora, na trave, ou para defesa do goleiro. Como em 1969, em um jogo entre Santos e Portuguesa Santista, cujo goleiro era o célebre Cabeção, que fez história no Corinthians (leia mais abaixo).

O milésimo gol de Pelé, por sinal, também saiu de um pênalti, em 19 de novembro de 1969, contra o Vasco, no Maracanã. O goleiro argentino Andrada quase pegou. Chegou a tocar na bola, mas não conseguiu evitar o gol e, furioso, socou várias vezes o chão.

Qualquer jogador pode sentir a responsabilidade. Nas decisões por pênaltis das Copas, o aproveitamento é de 71%. Ou seja, quase 30% das cobranças foram desperdiçadas. No último campeonato brasileiro, 30,5% foram perdidas.

Daniel sempre gostou de futebol. Torce desde pequeno – prefere não revelar para qual time. Teve um avô treinador de jogadores (Firmo de Mello), “que depois viraram grandes treinadores também”. E inclusive jogou, como amador. “Era um goleiro razoável”, lembra, rindo. E até cobrou pênaltis. “Mas principalmente estive do outro lado, como goleiro.”

 

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Pelé era o batedor oficial do Santos. Na falta dele, Pepe mandava o canhão

‘Não quero fazer feio’

Durante a pesquisa com os jovens atletas de base, uma percepção foi de que o medo de “fazer feio”, errando o pênalti, era maior que um possível reconhecimento por uma cobrança bem feita. “Com todos os grupos de atletas, após o pesquisador mencionar que as cobranças seriam filmadas e os cinco melhores cobradores poderiam ser mostrados na USP, poucos atletas se manifestaram de maneira verbal ou não verbal, a não ser com mudanças na sua expressão facial. Porém, quando em seguida foi mencionado que os cinco piores também poderiam ser mostrados, houve risos de maneira generalizada”, relata Daniel Mello no texto da tese.

“O público a que eles poderiam ter seus vídeos apresentados seria o mesmo, porém a reação de ter algo ruim sendo mostrado sobre ele superou a expectativa de ter algo bom sendo mostrado”, observa o pesquisador. Em uma das fases da experiência, um grupo passou a treinar fora do horário habitual. Um disse que “não queria fazer feio”, enquanto outro respondeu: “Como errei na primeira vez, vou treinar um pouco mais para ter certeza que acerto na segunda”. 

Já alguns que marcaram na primeira mostraram-se mais displicentes depois. Um deles chegou a dizer: “Não vou aparecer lá na USP como um dos piores com certeza, porque cobrei bem o primeiro pênalti, e já teve muita gente que cobrou mal”. 

“Vale também ressaltar que apesar de vários atletas mencionarem o fato de não quererem aparecer no vídeo errando um pênalti, nenhum deles citou o desejo de aparecer como um dos melhores cobradores de pênalti do grupo, mesmo que os cinco melhores, assim como os cinco piores, também apareceriam nos vídeos”, observa Daniel. E marcar na primeira não torna mais fácil a tarefa seguinte, como ele constatou ao ser abordado pela mãe de um dos jogadores, já na saída do treino: “Meu filho é o X. Ele marcou o gol, mas ele está nervoso com o outro pênalti. Está com medo de ir mal e passar vergonha”.

 

GAZETAPRESS (1965) E SITE MEU TIMÃO (DETALHE)Goleiro Cabeção
Cabeção, perto de completar 88 anos, recebeu placa do Corinthians em sua homenagem

Pepe era o ‘canhão’. E Cabeção parou Pelé

Era 16 de novembro de 1963. No Maracanã, diante de 120 mil torcedores, Santos e Milan, da Itália, faziam o tira-teima e decidiam o título mundial de clubes, depois de uma vitória para cada lado, ambas por 4 a 2. O árbitro argentino Juan Brozzi marca pênalti para o time brasileiro, que já era campeão mundial e queria o bicampeonato. Sem Pelé em campo, o cobrador deveria ser Pepe. Mas o lateral Dalmo disse ao técnico Lula: “Deixa comigo!”. Foi lá e marcou o único gol da partida, que deu o bicampeonato aos santistas.

José Macia, o Pepe, diz que ficou feliz com a decisão de Dalmo (que morreu em 2015). Seria o pênalti de maior responsabilidade de sua carreira. Antes de Pelé, ele era o cobrador oficial do time. Até que o camisa 10 começou a treinar as famosas “paradinhas”, aprendendo com… Dalmo.  

Pepe tornou-se conhecido pela potência de seus chutes. “Eu tinha uma maneira de chutar. Batia forte, sempre do lado esquerdo do goleiro. Largava brava no canto esquerdo. No canto direito eu não tinha muita confiança”, recorda o ex-jogador e ex-técnico, hoje com 83 anos, completados em fevereiro.

“A responsabilidade (de cobrar) é muito grande”, diz Pepe. “E jogo do Santos quase sempre tinha pênalti. No Pelé, em mim, no Coutinho…” Ele conta que perdeu algumas cobranças. “Com o tempo, fiquei observado. O goleiro já pulava (no mesmo canto).” Mesmo assim, não era fácil para o defensor alcançar a bola, chutada por aquele que ficou conhecido como “canhão da Vila”, que disputou 750 jogos pelo Santos e marcou 405 gols, ficando atrás apenas de Pelé na artilharia da equipe praiana, que defendeu durante 15 anos.

Foi exatamente na Vila Belmiro, campo do Santos que Luiz Morais, o Cabeção, defendeu um pênalti cobrado por Pelé, em jogo entre Santos e Portuguesa Santista, em 1969, seu último ano como profissional. “Ele cobrou dois. Um eu defendi, outro ele marcou”, recorda Cabeção, perto dos 88 anos. Ele foi o quarto goleiro que mais vestiu a camisa do Corinthians: 326 partidas. Foi ultrapassado pelo atual titular, Cássio, em fevereiro.

Modesto, Cabeção diz que defender um pênalti é questão de sorte. “Você marca um canto. Se ele (cobrador) chutar naquele canto, tudo bem”, diz o goleiro, que conta ter defendido “umas três ou quatro” cobranças.

Ele vê maior dificuldade para os cobradores no futebol atual. “Hoje, os goleiros são muito altos, têm 2 metros. Dificulta um pouco para os atacantes.”

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