A agricultura praticada no mundo no Pós-2ª Guerra foi e é, hegemonicamente, uma agricultura capitalista, submetida à lógica da concentração e centralização de capitais e de rendas. Desta forma, se provocou um descompasso entre o aumento da população e a segurança e soberania alimentar dos povos. Voltado a gerar lucros e não alimentos para combater a fome, o chamado agronegócio aprofundou desigualdades e desequilíbrios socioambientais insustentáveis. De um lado, alimentou a sanha financeira e de monopólios industriais. Do outro, expulsou camponeses de suas terras, criou desertos verdes, degradou solos e aprofundou desigualdades sociais.
Com uma população humana crescendo exponencialmente, subsequentemente a demanda por alimentos, energia e água aumenta na mesma proporção. Por sua vez, o uso inadequado dos recursos naturais para atender a estas demandas intensifica os processos de desertificação, mudanças climáticas e perda da biodiversidade, com impactos mais significativos nas terras secas, que com diversos níveis de aridez, representam cerca de 47% da área continental do planeta.
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Existem evidências concretas, com experimentos comprovados, de que a agroecologia, como novo paradigma, novo olhar da vida que articula ciência, prática e movimento, pode ser um meio adequado para encontrar as soluções a esses problemas e orientar a transição alimentaria necessária. Contudo, o alinhamento dessas evidências tem sido dificultado pela ausência de dados e informações baseadas em evidências científicas disponíveis sobre os efeitos das iniciativas agroecológicas.
Nesse contexto, nasceu o Projeto AVACLIM – Agroecologia, Garantindo Segurança Alimentar e Meios de Vida Sustentável, Mitigando Mudanças Climáticas e Restaurando Terras em Regiões Secas – buscando abordar essas lacunas de conhecimento através da avaliação dos efeitos multidimensionais de iniciativas agroecológicas em sete países (Índia, Brasil, Senegal, Etiópia, Marrocos, África do Sul e Burkina Faso) nos aspectos sociais, econômicos, técnicos e ambientais em escala local e paisagem-regional.
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O Projeto Avaclim – financiado pelo Global Environment Facility (GEF) /FAO/ Fundo Francês para o Meio Ambiente Global (FFEM) – tratou-se de uma iniciativa de pesquisa-articulação-ação entre o CARI – Centre d’Actions et de Réalisations Internationales (França), IRD – Institut de Recherche pour le Développement (França), Both ENDS – Environment and development Service (Holanda), EMG – Environmental Monitoring Group (África do Sul) e CAATINGA – Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Instituições Não Governamentais Alternativas (Brasil), congregando a ciência, tecnologia e inovação com a inclusão social, voltados a construir alternativas de convivência produtiva e sustentável em zonas áridas e semiáridas.
A pesquisa foi realizada em quatro etapas: 1°) Caracterização das iniciativas agroecológicas; 2°) Determinação do nível de agroecologização; 3°) Análises das condições de desenvolvimento das iniciativas agroecológicas e 4°) Avaliação multicriterial e multidimensional das iniciativas agroecológicas.
Em cada país foram conformados consórcios científicos compostos por técnicos, pesquisadores, e estudantes que trabalharam junto às famílias agricultoras experimentadoras inscritas ao projeto.
No Brasil, o consórcio científico foi conformado diretamente por doze organizações: cinco instituições de ensino, pesquisa e extensão: 1. Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE (líder do Consórcio, através da professora Laetícia Jalil), 2. Universidade do Vale do Rio São Francisco – UNIVASF (através do professor Hélder Freitas), 3. Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (através do professor Marcelo Casemiro), 4. Instituto Federal do Sertão – IF Sertão (através da professora Cristiane Marinho), 5. A área de Desertificação do Instituto Nacional do Semiárido – INSA, do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTIC (através do Pesquisador e Professor Aldrin M. Pérez-Marin); e sete organizações não governamentais, membros de várias redes e articulações nacionais, regionais e mundiais: 1. Agricultura Familiar e Agroecologia – ASPTA, 2. Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Instituições Não Governamentais Alternativas – CAATINGA, 3. Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – CETRA, 4. Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, 5. Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades – PATAC, 6. Centro de Desenvolvimento Agroecológico – SABIÁ, e 7. Núcleo Jurema – Feminismo, agroecologia e ruralidades.
Nas comunidades selecionadas, os consórcios científicos e de agricultores buscaram elucidar, de forma detalhada e criteriosa, as características e mecanismos ligados a manejos específicos que expliquem a capacidade adaptativa das comunidades e famílias a suportar e até mesmo recuperarem-se após evento de perturbação. As equipes também identificaram as estratégias de organização social utilizadas pelas famílias agricultoras para conviver em situações difíceis impostas pelos eventos ambientais extremos, assim como sistematizaram as estratégias que vem utilizando para permanecer nas comunidades. Foram quantificadas variáveis ambientais mais relevantes sobre a saúde do solo, vegetação e água. Em síntese, as equipes incorporam a retroalimentação social e comunitária a dados biofísicos e socioeconômicos levantados nas iniciativas agroecológicas estudadas.
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Os resultados mostraram que, no âmbito do semiárido brasileiro, muitas famílias vêm respondendo de forma positiva às novas condições ambientais, demonstrando capacidade de inovação e resiliência frente aos desafios impostos pelas mudanças climáticas e desertificação, através da intensificação da produção baseada na valorização dos recursos locais, no emprego de tecnologias e práticas de manejo que diversificam os sistemas produtivos, com atividades que se complementam e permitem a formação de estoques de água, forragens, alimentos e sementes; e uma maior circulação de nutrientes, biomassa e energia dentro dos agroecossistemas e comunidades.
Os efeitos das iniciativas agroecológicas tiveram desempenho acima de 80 (numa escala de 0 a 100), quando medimos a resiliência, saúde do agroecossistema, desempenho técnico-econômico, qualidade de vida e bem-estar.
O bom desempenho das iniciativas agroecológicas foi explicado pela auto-organização social; auto-regulação ecológica, diversidade funcional, manutenção da saúde do solo, uso eficiente de recursos e capitalização do conhecimento local.
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Em geral, se observou que as iniciativas agroecológicas estudadas eram bem diversificadas, compostas em média por mais oito subsistemas produtivos tais como: quintais produtivos, criação de bovinos, aves, ovelhas, porcos; sistemas agroflorestais, roçados, roçados de algodão, beneficiamento, mata (reserva) de caatinga. Todos integrados com importantes mediadores sistêmicos de fertilidade do agroecossistema como cisternas, silos, barreiros, poços, bancos de sementes, esterqueiras, bioáguas, biodigestores, casa de ração e motos, aspectos que potencializam e facilitam em alguma medida, a produção e o trabalho (ou a hora trabalho em cada subsistema).
A elevada biodiversidade e redundância de componentes das iniciativas agroecológicas estudadas permitem às famílias um contínuo e consistente funcionamento dos agroecossistemas, tornando-os mais resilientes, por exemplo, a eventos ambientais extremos, como as estiagens prolongadas que acontecem com frequência no semiárido. A heterogeneidade ecológica significou uma matriz paisagística com maior diversidade de soluções, seja de resistência, estabilidade, adaptabilidade, produtividade e autonomia.
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A diversificação e a eficiência no uso de recursos externos cumprem papel essencial no desempenho técnico-econômico das iniciativas agroecológicas estudadas, com destaque para os subsistemas de criação de animais (bovinos, caprinos, ovinos, porcos e aves) que cumprem um papel fundamental nos agroecossistemas, fornecendo alimentos para as famílias e produtos para o mercado, além da recirculação do estercos que potencializam o cultivo nos quintais produtivos biodiversos, cultivos anuais e sistemas agroflorestais.
As tecnologias sociais cisternas, barreiros, poços e bioáguas, implantadas nas iniciativas agroecológicas, garantem razoável e importante segurança hídrica para o consumo doméstico e para produção. Desse modo, verificou-se que a reciprocidade ecológica e social das iniciativas agroecológicas estudas foi elevada (maior de 80%).
Além da eficiência no processo produtivo, observou-se também que as iniciativas agroecológicas estudadas apresentaram alta diversidade de mercado (pontos de venda). Vende-se na comunidade, nas feiras livre, em empórios (i.e kaeteh), no PAA – Programa de Aquisição de Alimentos e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e ainda através da ECOARARIPE vendem o algodão agroecológico.
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Nestes espaços, comercializam vários produtos: cereais, animais, doces, galinhas, ovos, hortaliças, suínos, conferindo uma renda razoável que, somada à renda não agrícola, lhes garante uma economia familiar permanente e satisfatória, quando comparada com a renda média local. Verificamos que para cada dólar investido, as iniciativas agroecológicas obtiveram entre 2 a 3 dólares de lucro fiduciário, indicando alta eficiência econômica, além de importante e crescente soberania econômica, isto é, boa base de recursos autocontrolada (menor dependência externa) para a gestão dos agroecossistemas. Some-se ao resultado econômico em si, os enormes ganhos ambientais.
Quanto a melhoria da qualidade de vida e bem-estar, os quintais produtivos tiveram um papel significativo. Pois, nestes espaços ou subsistemas, encontram-se uma variedade os cultivos em mini escala, tais como: hortaliças, frutas e plantas medicinais que são consumidas pelas famílias, comercializados, trocados e ou doados na própria comunidade. Nos quintais produtivos em geral se produzem mudas para serem cultivadas em outras áreas dos agroecossistemas e alguns insumos, a exemplo do resto das frutas e hortaliças para alimentação das galinhas. Foram nestes subsistemas que se obtiveram os melhores valores de saúde do solo.
Outro aspecto diretamente associado à melhoria da qualidade de vida e bem-estar das iniciativas diz respeito ao Programas Um Milhão de Cisternas, o P1MC, assim como o Uma terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação do Semiárido, implementado em todo o semiárido brasileiro, que permitiu acesso a primeira e segunda águas às famílias. Assim, mediante este programa, as famílias adotaram estratégia de estocagem de água das chuvas para consumo humano, animal e vegetal, especialmente para a produção de alimentos nos quintais produtivos e das criações de pequenos animais.
Os estudos, no entanto, indicam que ainda há muito o que as iniciativas agroecológicas estudadas melhorem. A falta de empregos dignos e oportunidades, sobretudo para a população jovem, bem como a capacitação das mulheres associadas à participação e empoderamento feminino são limites percebidos na avaliação final. Quanto à gestão das rendas auferidas, controle dos recursos e tomada de decisões nos processos produtivos, percebeu-se problemas e limitações cruciais para o pleno desempenho dos agroecossistemas.
Em suma, verificou-se que as famílias com sistemas agrícolas em bases agroecológicas ampliam a soberania econômica, aprimoram eficiência técnica do processo de conversão de bens ecológicos em bens econômicos e aumentam a integração social.
Os processos de integração social, geração de conhecimentos em rede e das trocas/intercâmbios nos próprios agroecossistemas e com outras famílias, promovem e estimulam as experimentações e inovações, além da ampliação da participação de mulheres e jovens.
Finalmente, destacamos que as iniciativas agroecológicas apoiadas em estímulos políticos estruturantes, com práticas agropecuárias contextualizadas, socialmente inclusivas e integradoras, em combinação com o fortalecimento de mecanismos de reciprocidade comunitária, fortalecidos pela implementação de políticas públicas contextualizadas, aumentam os impactos socioambientais positivos da agroecologia no entorno social, econômico e ambiental e capacidade de respostas às mudanças climáticas e ao processo de desertificação.
* Aldrin M. Pérez-Marin é Pesquisador do Instituto Nacional do Semiárido (INSA).
** José Jonas Duarte da Costa é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
*** Pedro Paulo Carvalho é coordenador do Projeto – ONG CAATINGA.
**** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo